Uma Fonte da Filosofia de Machado de Assis

30, jan, 2020 | Literatura, Artigos, Filosofia | 1 Comentário

Por Otto Maria Carpeaux

Este ensaio é parte do livro Respostas & Perguntas, publicado em 2019 pela Editora Danúbio. 

Todo o mundo conhece o delírio de Brás Cubas: num deserto, o delirante encontra-se em face de um “vulto imenso, figura de mulher”, de impassibilidade egoísta, de eterna surdez; reconhece-a como a Natureza, sua mãe e inimiga; ela lhe explica a lei cruel que rege o Universo (“A onça mata o novilho porque o raciocínio é que ela deve viver”); mas afinal o pesadelo cede, e o monstro que trouxe Brás Cubas para aquele deserto transforma-se, sempre diminuindo, na figura familiar do seu gato. — Agora, num outro documento literário, menos famoso entre nós, leio de um sujeito que encontrou no deserto “um vulto grandíssimo, figura desmesurada de mulher”, de impassibilidade cruel (“Acreditaste que este mundo tenha sido criado para ti?”), mãe mas inimiga de todas as criaturas; ela lhe explica a lei cruel que rege o Universo (“que é um círculo perpétuo de produção e destruição”); aí também aparecem monstros, dois leões, que teriam devorado o infeliz, se um vento de areia não o tivesse encoberto e mumificado; “mais tarde, viajantes encontraram a múmia, trazendo-a para a Europa, colocando-a no museu não sei de que cidade” — não importa, porque todos os museus se parecem, assim como, conforme Machado de Assis, todos os cemitérios se parecem. Esse outro documento, que o autor das Memórias póstumas de Brás Cubas deve ter conhecido, é o Dialogo della Natura e di una islandese, que faz parte do volume Operette morali, de Leopardi. As poesias de Giacomo Leopardi não se ignoravam no Brasil, na época do romantismo; até hoje, o maior poeta que a Itália produziu depois de Dante é considerado no Brasil como um romântico melancólico, um poeta elegíaco. Talvez porque se desconheçam os seus diálogos em prosa, aquelas Operette morali que são uma das grandes obras da literatura universal. Machado de Assis as teria conhecido? Machado foi leitor assíduo de Schopenhauer, e este, por sua vez, foi grande admirador de Leopardi. Voltarei a esse ponto. Em todo caso, o autor do delírio de Brás Cubas reconhecido teria em Leopardi mais que um poeta melancólico e sim um pensador poético ao qual o ligavam profundas afinidades. O delírio de Brás Cubas é da mesma lucidez das Operette morali que são o documento principal da filosofia leopardiana.

Uma fonte da filosofia de Machado de Assis

São diálogos (e, em parte, monólogos) de uma estupenda variedade, apesar da monotonia do pensamento e do rigor clássico do estilo: resultados das leituras enormes de um espírito enciclopédico. Duma fonte hebraica surge o “cântico” do mitológico gallo silvestre, despertando os homens para acordarem do sono das “imagens vãs”. O Frammento apocrifo di Stratone di Lampsaco é uma pequena falsificação literária, pondo na boca do filósofo grego as idéias leopardianas sobre o universo. O diálogo de Hércules com Atlas, ao qual a decadência do mundo torna cada vez mais leve o fardo nos ombros, lembra os imensos estudos mitológicos de Leopardi, enquanto aquele diálogo do islandês com a Natureza lhe revela os interesses geográficos. O poeta volta para o solo italiano, notando a conversa de Torquato Tasso, preso no manicômio, com o seu “gênio familiar”. (“Como vai, Tasso? — Como se pode, numa prisão.”) Outro famoso poeta italiano, Parini, fala, pela boca de Leopardi, da vaidade da glória e dos inexoráveis destinos humanos — “mas é preciso acatar o nosso fado, por onde nos traga, com ânimo forte e sereno”, o que lembra tanto os estóicos da Antiguidade como o amor fati de Nietzsche. Enfim, os estudos científicos de Leopardi inspiraram-lhe o diálogo do célebre anatomista holandês Ruysch com as múmias do seu museu anatômico às quais ele sabia conservar toda a frescura de corpos vivos; certa noite, os mortos acordaram o sábio, cantando o coro (são os únicos versos no volume das Operette morali) que condensam a filosofia leopardiana:

Solo nel mondo eterna, a cui si volve Ogni creata cosa In te, morte, si posa Nostra ignuda natura; Lieta no, ma sicura Dall’antico dolor…”1

O personagem principal de todos os diálogos sempre é o mesmo “islandês”: a criatura humana perseguida pelo Fado, até repousar, como múmia, no museu anatômico. Reina neste livro, assim como no diálogo de Tasso com seu gênio familiar, “una notte oscurissima, senza luna ne stelle”.2 Mas quando o homem, despertando do “sono das imagens vãs”, reconhece o terror e a obscuridade da vida, então se lhe aproximam as imagens da arte — assim, Nietzsche explicava as origens do teatro grego — transformando o terror em sublimidade e o absurdo em comicidade. Sublime, a poesia de Leopardi é, e trágica. Na sua prosa, na mitologia fantástica dos diálogos, ele procurava “um grande estilo cômico”. Tasso e Ruysch são personagens de féeries: Ruysch assusta-se, de maneira cômica, da vivacidade musical das suas múmias bem conservadas; e a Tasso, implorando as consolações do Espírito, seu gênio familiar aconselha procurar o espírito nos “licores generosos”. A obra-prima desse triste humorismo leopardiano é o Diálogo de um vendedor de almanaques e de um passante na noite de Ano-Novo: ao vendedor, que promete dias felicíssimos para o futuro, o outro demonstra de maneira rigorosamente lógica que não há motivo para acreditar em dias mais felizes que foram os do passado — e estes teriam sido felizes? Mas, admite, para o otimista existem na realidade; e o vendedor corre, apregoando com convicção fortalecida seus almanaques.

Ora, pode-se viver com uma filosofia assim no coração? Contudo, esse diálogo do vendedor de almanaques encontra-se traduzido no último livro de Jean Paulhan, que foi editor das Éditions de Minuit e um dos chefes intelectuais da Resistência Francesa, exemplo de comportamento ativo, apesar dos motivos mais fortes de desespero definitivo, “com ânimo forte e sereno”. Eis a única maneira possível de um pessimista achar (como Machado na agonia) que “a vida é boa”. Pelo menos como filósofo Leopardi não foi elegíaco. Daí a diferença, já observada por De Sanctis, entre o poeta italiano e Schopenhauer, que também foi ateu mas espiritualista: dá testemunho disso a metafisica, “multicolor como a pele de uma onça”, do filósofo alemão. Toda elegia é, por índole, espiritualista. Mas a filosofia de Leopardi — a unidade filosófica da sua obra já foi demonstrada pelos mais agudos críticos italianos — é o materialismo. No Frammento apocrifo di Stratone di Lampsaco, Leopardi já fala da eternidade da matéria. Apenas esse materialismo não se baseia no cientificismo físico e biológico do século XIX, que Leopardi ainda ignorava, e sim nos seus estudos de filosofia grega. E os versos do coro dos mortos, no diálogo deles com o anatomista Ruysch, não deixam dúvidas quanto à fonte dessa filosofia, materialismo cuja finalidade ética é apenas a ausência da dor:

Nostra ignuda natura — Lieta no, ma sicura Dall’antico dolor…”3

É o materialismo de Epicuro: mais um que anda caluniado pelos séculos. Epicuro, embora materialista, não foi um “epicureu”; apenas achou que “a vida é boa”. Leopardi, embora triste, não foi um elegíaco. Machado de Assis, embora espirituoso, não foi um cético; ele também — “a vida é boa” — foi materialista. Em Leopardi também se encontra o motivo que sugere a impressão de ceticismo ao leitor de Machado de Assis. Como materialistas epicureus, o erudito grecista Leopardi e o “mulato grego” Machado seriam “pagãos”; mas na verdade não podem existir pagãos depois do advento do cristianismo. Fica, até nos anticristãos, estímulo da inquietação espiritual, do “ceticismo” pascaliano. Machado foi leitor de Pascal, Leopardi também foi leitor de Pascal; o famoso Pari inspirou-lhe as demonstrações lógicas do diálogo de vendedor de almanaques, sobre o valor do futuro. Mas por serem pascalianos, ainda não eram cristãos: Leopardi consolava-se com a “morte eterna” (“a matéria liberta para sempre da alma extinta”, diz o nosso poeta), e o outro com o pensamento de não ter transmitido “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Egoísmo? O “Epirurismo” lendário é egoísmo, mas o verdadeiro epicurismo não é. O “cântico do galo silvestre” ensinou ao poeta, despertando-o do sono das “imagens vãs”, a seguir o seu fado, “com ânimo forte e sereno”. O outro, quando o galo da madrugada o despertou da agonia, pôde dizer: “A vida é boa.” Pois então, não havendo mais futuro, é boa.

1 “Único ser eterno do mundo e ao qual retorna Cada coisa criada, Em ti, morte, repousa Nossa natureza desnuda; Contente não, mas protegida Contra a antiga dor.” [Traduzido por Emmanuel Santiago]

2 “Uma noite escuríssima, sem lua nem estrelas”. [N.E.]

3 “Nossa natureza nua / não contente, mas a salvo da antiga dor.” [N.E.]

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Detalhes do autor

Otto Maria Carpeaux

Nasceu em Viena, em 1900. Estudou Filosofia, Matemática, Sociologia, Literatura Comparada e Ciências Políticas. Doutorou-se em Química. Foi um intelectual de relevo no meio cultural vienense na década de 30. Após a anexação da Áustria foi perseguido pelos nazistas. Imigrou para o Brasil em 1939.

Carpeaux foi colaborador de diversos jornais e revistas do Rio de Janeiro. Entre seus livros destaca-se a obra-prima História da Literatura Ocidental. Faleceu em 1978, na capital fluminense.