A Literatura dos Lugares Feios

11, out, 2021 | Artigos | 0 Comentários

Por Alexandre Soares Silva

Estou na praia, tentando escrever; mas agora me parece que só consigo escrever em São Paulo. Preciso escrever sempre em lugares feios. Escrever é formar uma aura de palavras à minha volta para poder suportar a vida, uma espécie de corpo verbal entre o corpo físico e o astral, como um enfeite, como uma armadura. Se estou num lugar bonito, escrever pra quê? Por que os gregos escreviam, os gregos que escreviam? Por que Dante? Por que Maupassant? Eram imbecis? Só faz sentido escrever se você vive em Jacarta ou Osasco. Era de lugares assim que deviam sair gênios, e ainda mais gênios escapistas, tolkiens subdesenvolvidos com barrigas de esquistossomose. Mas escrever em Capri ou Anacapri? Em que o seu mundo imaginário vai melhorar o mundo à sua volta? Não vai.  Pelo contrário, vai piorar um pouco, que é aliás o que fazem as grandes obras literárias escritas em lugares bonitos – o que está no papel sendo evidentemente pior do que está fora do papel. Vejam todas as obras literárias que foram escritas em Genebra. Alguma delas é igual ou superior a Genebra? Se um poema é pior do que a rua em que foi escrito, não é melhor ir resolver um sudoku? Hein, Victor Hugo, cuja obra embora interessante é palpavelmente pior do que a Place des Vosges onde vivia? Só faz sentido escrever se o que está no papel for melhor do que está fora do papel. Estou errado? Como posso estar errado?

Por outro lado, que poema não é melhor que uma rua em Bonsucesso? O homem que escreve um poema horrível na padaria João Batista em Osasco melhora o mundo à sua volta com o poder da arte ruim mas menos pior que o mundo à sua volta. Bem, melhora Osasco; o mesmo poema lido fora de Osasco piora o mundo. Poetas ruins, pintores desajeitados, diretores drogadictos, Carpinejar, façam arte em lugares feios, se querem tornar o mundo melhor. Mudem-se para lugares ainda piores do que o produto do seu trabalho!

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Só consigo escrever no mesmo lugar, na minha rotina. Não consigo nem pensar longe da minha escrivaninha. É como se a minha vontade de escrever fosse uma criança tímida, dessas que fora de casa ficam se protegendo atrás das pernas dos pais e não falam nada para os anfitriões, que encaram como se fossem meliantes. Estou olhando a praia nesse momento, mas talvez exista algo de alarmante na presença do mundo real, algo de ameaçador na presença de uma paisagem inteira na sua frente, e isso inibe a parte delicada da nossa alma que usa tentativas de pensamento e de percepção para escrever.  Ao primeiro sinal de perigo (mesmo falso) essa parte da alma se recolhe, não faz mais nenhuma tentativa de pensamento ou de percepção, e só volta a tentar funcionar quando o mundo real se apaga um pouco, que é o que acontece quando estamos trancados no nosso escritório e na nossa rotina. A mente talvez funcione assim: “(com espanto) Estou no mundo real! (uma praia, uma cidade estrangeira, uma casa alugada na montanha, etc) Bom, é no mundo real que os perigos acontecem. Leões reais só atacam no mundo real. Pessoas só perdem a perna no mundo real. Quando imaginam que perdem a perna, só perdem uma perna imaginária: os membros reais mesmo só são perdidos no mundo real, que é isso que eu estou olhando agora. Logo, a situação é perigosa; preciso concentrar todos os meus recursos não na construção de pensamentos e de frases e de LITERATURA mas na simples sobrevivência.” Mas que sobrevivência? Do que você está falando? Estamos só viajando. Crie um parágrafo, mente! Crie uma frase! Mas não importa, a mente está de novo olhando o mundo – agradada até, achando tudo bonito, mas levemente assoberbada pela realidade da realidade.

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Alexandre Soares Silva

Alexandre Soares Silva

Alexandre Soares Silva nasceu em 1968. Publicou três romances, A Coisa Não-DeusMorte e Vida Celestina e A Alma da Festa, além de uma coletânea de ensaios, A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho. Trabalha como roteirista e vive em São Paulo.